segunda-feira, 31 de março de 2008

Águas passadas



Ao contrário do futuro, reino da incerteza, o passado é terreno percorrido e cartografado. Por isso, o passado é seguro. E como todos prezamos a segurança, temos tendência demasiadas vezes para viver no passado e poucas hipóteses concedermos à insegurança do futuro. Mesmo quando é amargo e doloroso o passado é sempre certo e seguro. Paradoxalmente, a única coisa certa e segura no futuro é aquela que mais nos esforçamos por evitar.

sábado, 29 de março de 2008

Perdas & ganhos




Não é fácil quando as pessoas não são capazes de arrumar o passado. Há até quem nunca o arrume; até mesmo aqueles que teoricamente estariam melhor apetrechados para o fazer. Aprende-se, suponho, mas o acesso à aprendizagem em si – em devido tempo todos somos forçados a arrumar pessoas e coisas nas prateleiras do passado - não basta para nos conciliarmos efectivamente com este, é necessário também algum fair play da nossa parte.

Sem fair play, seria difícil aceitar a perda de tantas coisas e pessoas que parecia impossível perdermos. Como aceitar a perda de uma mãe, um pai, uma fortuna ou até de talento? Como aceitar os truques do destino? Não é fácil e não há muito a dizer sobre isso; aqueles que não aceitem que por vezes a perda pode parecer impossível – e como tal é experiênciada - também não conseguirão arrumar os seus assuntos presentes com o passado próximo ou distante, sendo que quase sempre essa é a atitude mais apropriada a tomar. Quanto mais depressa formos capazes de nos conciliar com as nossas perdas, maiores serão os nossos ganhos.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Os sapatos do Sr. Ferro




O Sr. M. Ferro tomou posse hoje de manhã, na sua nova capacidade de Juíz de Execução, em cerimónia realizada no Tribunal da Relação de Lisboa. No final da cerimónia, oficiada pela presidente do Conselho Jurídico da Ordem, o Sr. M. Ferro confessou-se «contente» com o evento, o qual, feliz, classificou como «ponto de partida» para o «futuro de muitas pessoas». Depois da foto de família da praxe e filosofando sobre as suas novas atribuições, no almoço comemorativo que se seguiu, o Sr. M. Ferro desabafaria: «É certo que esta não é uma actividade popular, sobretudo numa sociedade tão endividada. Mas, mais importante, esta é um actividade de Justiça, para cumprir, estejam as pessoas endividadas ou não. Nada justifica a fuga ao fisco e quem o faz deve ser punido».

O Sr. M. Ferro tomou posse com outros treze novos juízes de execução, dois dos quais são juízas. Questionadas informalmente, ambas afirmaram, por entre sorrisos de visível contentamento, não sentirem qualquer segregação de género no Juizado de Execução. No entanto, sob o imperativo do off the record, o Sr. M. Ferro confidenciar-nos-ia a esse propósito, ao cair da noite: «Elas são boas como o milho, e está tudo dito, boas como o milho». A nossa reportagem pode afirmar que, mais uma vez, pelo menos no que respeita ao critério estético, o Sr. M. Ferro não se enganava.

O Sr. Ferro convence um amigo



Um dia um amigo do Sr. M Ferro dizia-lhe que as pernas não o interessavam em absoluto, visto serem as primeiras partes da anatomia feminina que pessoalmente colocaria sempre de lado, exceptuando as das mulheres feias e as das más. Pese o brejeirismo da imagem, o Sr M. Ferro discordou de imediato, quer figurativamente, quer não. O Sr. M. Ferro considerava possuírem as pernas implicações tremendas, podendo estar na base de intuições geométricas e assumirem a forma de determinadas singularidades matemáticas ditas variantes fechadas de tridimensão conexa, serem o fundamento de intuições literárias ao constituírem-se como parte integrante dos dispositivos de sedução psico-literária e ainda não serem quase nunca nada disso, mas não há dúvida de que não deixam ninguém indiferente e foi isso mesmo o que - com o auxílio de uma rapariga que passava perto da esplanada onde conversavam - o Sr. M. Ferro fez ver ao seu amigo.

Uma jovem visita o Sr. Ferro



Quando uma jovem foi visitar o Sr. M. Ferro (meu avô) ao gabinete e o interpelou sobre a natureza romântica das flores o Sr. M. Ferro sentiu-se tentado a responder-lhe que para ele apenas existiam dois tipos de flores românticas: os cravos e as margaridas. Contudo, não o fez, rementendo-se ao silêncio. A jovem, estranhando o recolhimento do Sr. M. Ferro e adivinhando no mesmo uma mágoa antiga, perguntou-lhe então placidamente sobre a natureza das prisões. Aí, despertando da sua sonolência, o Sr. M. Ferro de pronto lhe respondeu: «É a mesma das flores.»

terça-feira, 25 de março de 2008

Perspectiva nocturna




Esta noite sonhei que me sentei e que comecei a escrever de novo. Puro engano. Acordei com um travo amargo na boca e as pálpebras pesadas e desejei não ter sonhado o que sonhei e não ter vencido o que perdi e não gostar de morder a minha vida a correr num abraço que ficou por dizer ou seria um chuto que não dei ou uma vontade de dizer que estou morto e que gosto de morrer. Depois, ergui-me, abri a janela deixei entrar o ar fresco da noite e percebi que afinal tudo não passou de egoísmo: o egoísmo da minha perspectiva doente.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Homens roubados




O homem apagava-se ao lado da Brasileira do Chiado, a mão estendida à caridade alheia, o olhar preso talvez a um passado menos cruel. O homem apagava-se, perdido a um canto escuro e eu não resisti em o iluminar. No fim, deixei-lhe dois cigarros, cinquenta cêntimos e fui à minha vida, satisfeito e feliz por mais um momento que roubara a alguém, a alguém que já não se importava de ser roubado.

Justiça do esquecimento




A vida nunca foi justa. A justiça é uma ficção que inventamos para dar sentido à vida, sabendo que nos escondemos atrás desse sentido que imaginamos justo hoje, mas que ontem não o teria sido e amanhã voltará a não o ser. A vida é vida, e a vida não é moral e se não é moral não pode ser justa. A vida é vontade de viver. Já o Tempo nunca muda e passa sempre depressa e tudo julga, justamente não o fazendo, fazendo-nos esquecer. Um dia, nem as memórias do Tempo sobram, quanto mais o pretenso sentido de justiça da vida.

sábado, 22 de março de 2008

Vida na sombra




A vida é feita de desempenhos. Os desempenhos são feitos de papel. Os papéis são feitos para o jogo e este é feito de vivacidade. O jogo seduz e conquista. Os papéis no jogo são múltiplos. Os olhares também. Já as certezas são efémeras e os despojos insignificantes. Apenas sobra a memória.

Começar de novo




Todos os meus projectos anteriores na Internet, quer os que iniciei só, quer os que desenvolvi em conjunto com outros, resultaram em fracassos mais ou menos frustrantes. Talvez que as expectativas fossem demasiado altas. Hoje, começo mais um blogue, a solo. Para onde vai e sobre do que tratará, é coisa que ainda desconheço. Pode até tratar-se de um nado-morto e ficar-se apenas por estas palavras. Não sei. Apenas sei que era tempo de começar de novo. De tentar um novo rumo e, talvez, re-encontrar na procura um fascínio perdido pelo maravilhoso mundo novo da Blogoesfera.