quarta-feira, 14 de maio de 2008

Vida publica & privada



Na minha vida pública tenho de engolir sapos numa base diária. A vida pública, regra geral, é assim mesmo, e, se até o próprio Sócrates tem de vir pedir desculpa por acender um cigarrito num voo intercontinental, imagine-se o que não tem um tipo absolutamente comum de fazer no seu dia à dia. Isso é na minha vida pública.

Na minha vida privada, contudo, as coisas são diferentes. O último território onde o homem moderno pode (ainda) estabelecer o principado da sua independência é o da sua vida íntima.

Não passo cartão dos meus actos na minha vida privada a ninguém. Não cometo quaisquer crimes privados que possam ser extrapolados para o direito público.

Escrevo o que quero, quando quero e sobra-me tempo. Não ponho os cornos à minha parceira, não vendo amigos nem troco família. Por isso não me queiram vender arquétipos comportamentais; não me queiram impor cabrestos.

Caso contrário, terei de vos mandar para a puta que vos pariu. É essa, talvez, a maior diferença entre a vida pública e a vida privada: na primeira não podemos explodir, na segunda essa é sempre uma possibilidade diária.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Sr.ª Abril



Encontrei esta senhora no dia 25 de Abril de 2007, batiam as três da tarde, e uns poucos de nós queimavam o tempo, enquanto esperavam pelo desfile com o o qual a Esquerda inundaria as seis faxas de rodagem da Avenida. A senhora estava sentada num banco igual a todos os outros, mais perto dos Restauradores do que do Marquês e aos pés tinha uma cesta cheia de cravos, que pretendia vender a um euro cada, assim iam naquela tarde as contas da revolução, num dia tão próximo e ao mesmo tempo tão longínquo, e eu achei-lhe piada.

Abordando-a, pedi-lhe permissão para um retrato. Acabei por tirei uns três. Este foi o que ficou melhorzito, apesar dos pólens e da contra-luz a que a minha fuji é tão sensível.

Pessoalmente, o que me interessa no retrato está na mentira da foto. A mulher parece gasta pelo tempo, miserável e desamparada, numa palavra: esquecida. A isso junta-se a ironia cruel do «espaço arte» e da pastelaria «Veneza» em background. Tudo isso é falso. É verdade que o background foi uma inspiração de momento e a expressão do motivo uma encenação que não pedira. O resultado é belo e em simultâneo cruel.

A verdade é que quando pedi autorização para a foto a mullher se encontrava em animada cavaqueira, com uma colega de ofício. Após consentir em ser retratada, assumiu, sem mais, esta pose, pese embora ou talvez por causa mesmo de todas as minhas súplicas insistentes de «faça lá uma cara laroca!» ou «faça um sorriso!»

Por fim, com poucas chapas disponíveis e ainda com este camarada para alvejar, resignei-me, deixei cair a fuji e agradeci. Instantaneamente, a mulher fez um dos sorrisos mais belos e genuínos que me foi dado ver no último ano.

terça-feira, 15 de abril de 2008

A tribute to perfection



(... ) All avenues wide unwrapped, this is just where I wanted to be and I shall bother you modestly more; my path to magnificence undeniably a theme of perseverance, will power, justice and admiration; a cosmos complete with a totality of thought, I will bother you less than a fleck of dirt in this pursuit of mine for Eternal appreciation and undying splendour, for space is for the mind of Man the peaceful portrait I hereby paint.

In the end of the ending, the beginning of self-resilience, I shit you not, your children will tell the tale of who I was and still am and all of you will be long gone decease by then and me, me and only me alone, will take of thee, of thy fading memories the worthy loving care they wrongly deserve.

Undeniably, I’m a song to be sung by poets, a poem to be written by wiz computer con actors, a sonnet to be bestowed on false friends and factual foes instantly fouled together! Yes, I’m an Odyssey even Ulysses himself dare not shun! Thost thou understand what I have just said? Thost thou fear pernicious foul play in this poetry filled with perfection fabulous? (...)


segunda-feira, 31 de março de 2008

Águas passadas



Ao contrário do futuro, reino da incerteza, o passado é terreno percorrido e cartografado. Por isso, o passado é seguro. E como todos prezamos a segurança, temos tendência demasiadas vezes para viver no passado e poucas hipóteses concedermos à insegurança do futuro. Mesmo quando é amargo e doloroso o passado é sempre certo e seguro. Paradoxalmente, a única coisa certa e segura no futuro é aquela que mais nos esforçamos por evitar.

sábado, 29 de março de 2008

Perdas & ganhos




Não é fácil quando as pessoas não são capazes de arrumar o passado. Há até quem nunca o arrume; até mesmo aqueles que teoricamente estariam melhor apetrechados para o fazer. Aprende-se, suponho, mas o acesso à aprendizagem em si – em devido tempo todos somos forçados a arrumar pessoas e coisas nas prateleiras do passado - não basta para nos conciliarmos efectivamente com este, é necessário também algum fair play da nossa parte.

Sem fair play, seria difícil aceitar a perda de tantas coisas e pessoas que parecia impossível perdermos. Como aceitar a perda de uma mãe, um pai, uma fortuna ou até de talento? Como aceitar os truques do destino? Não é fácil e não há muito a dizer sobre isso; aqueles que não aceitem que por vezes a perda pode parecer impossível – e como tal é experiênciada - também não conseguirão arrumar os seus assuntos presentes com o passado próximo ou distante, sendo que quase sempre essa é a atitude mais apropriada a tomar. Quanto mais depressa formos capazes de nos conciliar com as nossas perdas, maiores serão os nossos ganhos.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Os sapatos do Sr. Ferro




O Sr. M. Ferro tomou posse hoje de manhã, na sua nova capacidade de Juíz de Execução, em cerimónia realizada no Tribunal da Relação de Lisboa. No final da cerimónia, oficiada pela presidente do Conselho Jurídico da Ordem, o Sr. M. Ferro confessou-se «contente» com o evento, o qual, feliz, classificou como «ponto de partida» para o «futuro de muitas pessoas». Depois da foto de família da praxe e filosofando sobre as suas novas atribuições, no almoço comemorativo que se seguiu, o Sr. M. Ferro desabafaria: «É certo que esta não é uma actividade popular, sobretudo numa sociedade tão endividada. Mas, mais importante, esta é um actividade de Justiça, para cumprir, estejam as pessoas endividadas ou não. Nada justifica a fuga ao fisco e quem o faz deve ser punido».

O Sr. M. Ferro tomou posse com outros treze novos juízes de execução, dois dos quais são juízas. Questionadas informalmente, ambas afirmaram, por entre sorrisos de visível contentamento, não sentirem qualquer segregação de género no Juizado de Execução. No entanto, sob o imperativo do off the record, o Sr. M. Ferro confidenciar-nos-ia a esse propósito, ao cair da noite: «Elas são boas como o milho, e está tudo dito, boas como o milho». A nossa reportagem pode afirmar que, mais uma vez, pelo menos no que respeita ao critério estético, o Sr. M. Ferro não se enganava.

O Sr. Ferro convence um amigo



Um dia um amigo do Sr. M Ferro dizia-lhe que as pernas não o interessavam em absoluto, visto serem as primeiras partes da anatomia feminina que pessoalmente colocaria sempre de lado, exceptuando as das mulheres feias e as das más. Pese o brejeirismo da imagem, o Sr M. Ferro discordou de imediato, quer figurativamente, quer não. O Sr. M. Ferro considerava possuírem as pernas implicações tremendas, podendo estar na base de intuições geométricas e assumirem a forma de determinadas singularidades matemáticas ditas variantes fechadas de tridimensão conexa, serem o fundamento de intuições literárias ao constituírem-se como parte integrante dos dispositivos de sedução psico-literária e ainda não serem quase nunca nada disso, mas não há dúvida de que não deixam ninguém indiferente e foi isso mesmo o que - com o auxílio de uma rapariga que passava perto da esplanada onde conversavam - o Sr. M. Ferro fez ver ao seu amigo.

Uma jovem visita o Sr. Ferro



Quando uma jovem foi visitar o Sr. M. Ferro (meu avô) ao gabinete e o interpelou sobre a natureza romântica das flores o Sr. M. Ferro sentiu-se tentado a responder-lhe que para ele apenas existiam dois tipos de flores românticas: os cravos e as margaridas. Contudo, não o fez, rementendo-se ao silêncio. A jovem, estranhando o recolhimento do Sr. M. Ferro e adivinhando no mesmo uma mágoa antiga, perguntou-lhe então placidamente sobre a natureza das prisões. Aí, despertando da sua sonolência, o Sr. M. Ferro de pronto lhe respondeu: «É a mesma das flores.»

terça-feira, 25 de março de 2008

Perspectiva nocturna




Esta noite sonhei que me sentei e que comecei a escrever de novo. Puro engano. Acordei com um travo amargo na boca e as pálpebras pesadas e desejei não ter sonhado o que sonhei e não ter vencido o que perdi e não gostar de morder a minha vida a correr num abraço que ficou por dizer ou seria um chuto que não dei ou uma vontade de dizer que estou morto e que gosto de morrer. Depois, ergui-me, abri a janela deixei entrar o ar fresco da noite e percebi que afinal tudo não passou de egoísmo: o egoísmo da minha perspectiva doente.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Homens roubados




O homem apagava-se ao lado da Brasileira do Chiado, a mão estendida à caridade alheia, o olhar preso talvez a um passado menos cruel. O homem apagava-se, perdido a um canto escuro e eu não resisti em o iluminar. No fim, deixei-lhe dois cigarros, cinquenta cêntimos e fui à minha vida, satisfeito e feliz por mais um momento que roubara a alguém, a alguém que já não se importava de ser roubado.